(Parque do Mirante, Piracicaba - SP)
Saímos para andar. Eu tinha planos que ele não sabia . O
por-do-Sol nos encontraria no mirante da cidade, o rio cantaria o morrer do dia
e dançaria para nosso deleite – e para a surpresa dele. Ou assim eu esperava. O
mirante era mais longe do que eu calculava e assistimos o por-do-Sol em uma
praça vazia da cidade, para depois seguirmos ao nosso destino. Era uma região
inexplorada para mim, e um lugar tão belo que desconhecia existir tão perto da
minha casa. A Lua abençoava nosso passeio, cheia, plena e absoluta em uma noite
estrelada. O rio cantava implacável, furioso, cheios de quedas d’água, de
armadilhas para os peixes. Terra “onde o peixe para”... Não via nenhuma maneira
de qualquer coisa parar em uma enxurrada daquelas – nem de sobreviver. Ainda assim, uma árvore no meio da correnteza afrontava a fúria do Rio com seu tamanho e sua copa florida. Seguimos
andando pelo lugar. Um parque tão perto do centro de uma cidade, tão lindo e
tão deserto era pra mim impossível de conceber. Apenas um ou outro casal de
amantes se surpreendiam com nossa chegada – e logo voltavam ao que estavam
fazendo ao perceber que era um outro casal que se aproximava. Conforme
andávamos, até mesmo os amantes esporádicos sumiam, dando lugar a um enorme
espaço vazio, o Engenho Central, utilizado frequentemente para grandes eventos
regionais, shows, exposições de arte. Naquela noite, porém, ele estava vazio,
deserto, e ainda assim aberto. Explorávamos o local com curiosidade, protegidos
pelo som do implacável rio, e pela luz da Lua. Eis que no meio de um mar de
chão cimentado erguia-se uma impotente árvore, que crescia na diagonal, quase
que na horizontal por uma grande extensão, até retomar sua direção apropriada,
o céu, e criando uma gloriosa copa, habitada por formigas e vegetais menores,
que se enraizavam nos vincos de seus troncos. Uma outra árvore menor, que
crescia reta para cima, sustentava um quadro de força e alguns fios elétricos,
e lhe fazia companhia naquele parque cinza e deserto. Contemplei-a por alguns
momentos e saí andando em direção ao Rio e à linda paisagem das luzes da
cidade, do outro lado da margem. Quando olho ao redor, meu companheiro havia
sumido. Apenas um momento sombrio na copa das árvores indicava onde ele estava.
A aproximadamente 2 metros do chão, ele se sentava no tronco da grande árvore,
e apoiava suas costas na parte vertical do tronco. De longe parecia a visão de
alguma criatura mística de um bosque como um duende ou um fauno, que sorria pra
mim na penumbra. Fui em direção à árvore. Eu estava usando um vestido longo,
quase na hora de sair troquei-o por uma calça jeans, mas algo me impediu. Teria
que subir a árvore de vestido mesmo. Tirei os chinelos, e descalça comecei a
escalar, ou melhor, andar pela árvore como um quadrúpede.
Quando cheguei a mais ou menos um metro e meio do chão,
estacionei. Congelei. Travei.
- Venha... Vamos... – ele me dizia
- Não não... Aqui tá ótimo! – eu respondi paralisada.
O que é que eu estava fazendo?! Uma queda daqui em um chão
de cimento desses poderia me quebrar um braço ou perna facilmente. Que
estupidez! Ainda mais de vestido! Eu estava louca! O tronco era bem horizontal,
porém era estreito demais. Seria muito fácil cair ali. Um pavor, pânico irracional
me invadiu o corpo. Eu sentia meus músculos travados onde estavam, e tinha a
nítida sensação de que qualquer movimento que eu fizesse, cairia no chão. Era
uma altura pequena demais para se temer, mas mais do que o suficiente para me
machucar. Independente de ter um fundamento racional ou não, esse pânico tomou
conta de mim. Só desejava que alguém me resgatasse de lá o quanto antes.
- Qual é... Vem cá – ele se levantou no tronco e em pé,
caminhou até mim.
- Cuidado! Você vai cair! – eu gritei.
- Num vou não...Olha só.. É simples... O tronco é largo o
suficiente. - ele andava de um lado pro outro no tronco, como se estivesse andando no chão.
- Não pra mim! Eu não estou acostumada!
- Ahhh Qual é... Você sempre adorou altura... Lugares
altos... Grandes paisagens... Vamos lá... Eu te ajudo.
Eu precisava me acalmar. Todo meu corpo tinha entrado em
estado de perigo eminente. Eu mal conseguia controlar minha respiração. Meu
coração batia mais rápido do que eu podia contar, eu suava frio. Ao mesmo
tempo, a ideia de estar lá no topo da árvore me fascinava, a própria ideia de
subir na árvore me fascinava. Eu queria continuar. Havia algo muito profundo em
mim que me impelia a seguir em frente. Além disso, eu sabia o medo era o
primeiro inimigo. Seguir em frente mesmo com ele era o desafio. E eu não podia
me dar ao luxo de perder uma oportunidade de vencê-lo. Mas tudo parecia tão
hostil... Tão alto... O chão tão distante e tão duro... O tronco parecia tão
estreito e inseguro. Todo meu corpo me travava naquele ponto e não queria sair.
- Calma! – eu disse – Preciso de tempo.
- Eu não estou com pressa...
Não. Eu subiria aquela árvore. “Não sei porque estou tão
apavorada desse jeito, mas esse pavor é real, e eu vou superá-lo”. Comecei
tentando controlar minha respiração, em seguida relaxando os músculos – eles
pareciam traumatizados pela tensão. O relaxamento induzido me dava uma sensação
de anestesia, e ao mesmo tempo meus sentidos nunca estiveram tão aguçados. Pedi
ajuda para a árvore mentalmente. Pedi para que ela me fixasse em seu tronco.
Ela parecia responder que me ajudaria, com uma gentileza quase maternal.
Procurei um lugar para apoiar meu joelho – eu daria o primeiro passo. Quando
encontrei um lugar seguro, entre pequenos sustos de pisar em falso, e o medo
como um todo quase me esmagando, alternei meu peso. Eu estava ganhando
movimento de novo.
- Iiiissso... Pode vir... Está indo muito bem.
Tentei dar mais um passo, porém o vestido me impediu. Gelei.
Todo o medo parecia ter voltado com ainda mais intensidade que antes. Meus
músculos estavam travados novamente.
- O vestido! – eu gritava – Tá enroscando... me ajuda!
- Pronto, tirei... Muito bom... Agora continua...
Mais uma vez fiz todo o processo para me acalmar. Continuei
até a metade. Ele andou até o final do tronco, onde estava antes, e disse
- Agora venha até aqui sozinha. Você não precisa mais de
mim.
O tronco agora era ainda mais estreito, e a altura maior.
Mas ele tinha razão. Eu precisava terminar isso sozinha. Estava tão nervosa que
minhas mãos tremiam.
- Aqui tá bom já... Vem aqui.
- Não, você consegue, vai... Você é capaz.
Ele tinha razão. Eu precisava superar isso. Eu queria
superar isso. Não podia deixar o medo me paralisar dessa forma. Segui,
segurando o vestido, passinho por passinho, encontrando pontos seguros para me
apoiar, e esquecendo da altura. Minhas mãos ainda tremiam. Eu ainda suava como
se estivesse em uma sauna. Mas andei. Passinho por passinho. Gritando,
grunhindo, ofegando, palpitando. Tentei esquecer tudo isso. Pensar apenas no
movimento. Apenas na árvore, que me queria bem. Até me apoiar finalmente dos
braços dele.
- Aháaa!! Sabia que vc conseguiria! Proonto.. Chegou! Tá
vendo? Você conseguiu... – ele ria contente como se eu tivesse conquistado algo
muito precioso.
Eu mesma disparei a rir. Mais de alívio do que de alegria no
começo. Depois foi um riso de deboche de mim mesma... Tão amedrontada! Era como
se a adrenalina me induzisse a rir como uma trouxa. Sentados ali, e rodeada por
ele, eu me sentia mais segura, mas não completamente. Coisa que ele sem dúvida
explorou, me mostrando que mesmo pendendo para os dois lados, ainda
continuávamos ali em cima – uma demonstração que sem dúvida me desesperou
novamente. Depois que nos acalmamos (eu do meu pânico, e ele de seus risos), reparei no poder daquele local. A mistura
do lugar deserto, a altura, o rio correndo e a Lua cheia brilhando eram uma
combinação maravilhosa que inebriava os sentidos. De repente eu tomava
consciência de um lado animal meu, e ele estava muito feliz...
Porém nossa meditação foi interrompida. Um homem tinha
decidido fazer sua caminhada na calada na noite, contemplando o rio e passando a poucos metros da árvore.
“Estamos invisíveis” ouvi ele sussurrando em meu ouvido.
Intentei que realmente ficássemos imóveis, invisíveis, nas
sombras. O homem seguiu seu caminho sem nos notar.
- Acho que deveríamos ir – eu disse.
- Então vamos – disse ele, ficando em pé no tronco.
- Cuidado! - eu sentia meus músculos gelando de novo.
- Relaxa... tá de boa.. Vamos... Fique em pé também.
- Tem certeza?
- Claro...
Peguei em sua mão e aos poucos fui recuperando minha
natureza bípede. Dei alguns passos, lateralmente, mas não me sentia tão bem
quanto ajoelhada. Segui, passinho por passinho, mais uma vez. O medo ainda era
o mesmo, porém eu me sentia mais preparada pra ele. Chegando em um ponto baixo
da árvore, onde já era possível descer, ele pulou e me estendeu a mão pra me
ajudar. Mas algo em mim não queria mais descer dali. Pra que descer? Se eu
posso ficar aqui em cima? Meu companheiro riu de mim. Tão assustada antes, e
agora não queria descer...
- Eu sabia que você ia gostar... – ele disse, para nosso
riso.
Eu me encolhi, com os braços ao redor dos joelhos, sorrindo,
respirando fundo, ainda com resquícios de meu nervosismo. Após agradecer a
árvore, desci.
Nós dois ríamos como idiotas. Dessa vez foi de felicidade...
Como eu estava assustada! Olhei para a árvore... Era ainda mais alta vista de
baixo. Voltamos a andar pelo deserto cinza ao redor, olhando para o rio...
depois de um momento de contemplação eu lhe disse
- Não sei porque fiquei tão insegura... Eu nunca soube subir
em árvores, mas...
- Ah, não? – ele em interrompeu dando um olhar no fundo dos
meus olhos de gelar a barriga – Claro que sim! Você sempre soube, Jessika, e isso quase te matou!
Quase te estrangularam por causa disso! Por isso eu insisti tanto para que você
fosse.
Eu estava perplexa. Ele tinha razão.
Quando eu tinha cerca de 7 anos, em uma festa de família, eu
como sempre, estava subindo em uma antena de alta tensão no quintal de minha
casa. Eu sabia escalar aquela antena há muito tempo. Ela seguia no mesmo padrão
de montagem até lá em cima, com uns 10 metros de altura. Eu sonhava que um dia
eu pudesse escalá-la até o fim, já que a lógica da escalada era a mesma desde a
base. Porém nunca passei os 2 ou 3 metros, quando algum adulto sempre me
proibia de continuar. Nessa festa, porém, quando cheguei a uns 2 metros, meu
tio, furioso por eu ter desobedecido sua ordem de não escalar, me arrancou do
poste.
Na minha cabeça, aquilo era somente mais uma de suas brincadeiras,
sempre muito brutas e divertidas, e
gargalhava. Não percebi o quanto estava
bravo comigo. Ele então pegou-me pelo braço, me arrastou até a cozinha, longe
do olhar de todos, e prendeu-me na parede pelo pescoço, tirando meu ar.
- Nunca mais você faça isso, me entendeu? – seu rosto estava
tão próximo ao meu que quase se encostavam. Seus olhos refletiam um ódio
absurdo que nunca tinha visto antes. Seu hálito de cerveja e churrasco. A brutalidade da cena me deixou chocada. Eu
sempre tinha confiado e admirado meu tio. E de repente uma violência dessas...
Em seguida, ele me largou, sentou-se numa cadeira, com a
cabeça apoiada em uma das mãos. Estava profundamente arrependido e abalado por
ter feito aquilo comigo. De repente ele caiu em si. E então saiu bufando da
cozinha. Enquanto isso eu me encolhia entre os balcões e a parede, soluçando de
chorar, apavorada, feliz por respirar de novo. Por vários instantes eu achei
que nunca mais faria isso...
Toda a cena se passava em minha mente naquele lugar, com o
rio correndo, o vento soprando e a Lua lá cima, de testemunha... Eu tinha
ficado zonza por lembrar... Desde então nunca mais tinha escalado absolutamente
nada, nem se quer os braços dos sofás (onde costumavam ser meu lugar favorito
de estar) e nem mais procurei meu tio pra brincar como antes. Depois daquele
episódio, que foi lembrado por mim com um terror absurdo durante a
Recapitulação, eu nunca mais conseguira ser a mesma “menina-macaca” de antes.
Pelo contrário, o principal fator que me influenciou depois daquilo era minha
rígida escola e suas maneiras. Uma instituição que nasceu e cresceu para formar
“homens e mulheres educados para liderar a sociedade”. Para mim, era como a
esperança de nunca mais fazer nada de errado – para nunca mais ter que encarar
um homem me estrangulando daquela forma novamente...
Mesmo meu relacionamento com meus pais nunca mais foi o
mesmo. Sentia-me entristecida e talvez até traída, com a sensação de que meu pai
deveria ter me protegido, mesmo tendo consciência de que ele não sabia do
ocorrido. Senti-me grata por passar a maior parte do tempo com minha mãe – já
que meu pai viaja muito a trabalho. Na minha cabeça, depois daquele dia, as
mulheres era as únicas que não podiam me machucar. Os homens, sempre agressores
em potencial. Ainda confiava plenamente em meu pai, porém sabia que se
quisesse, ele também poderia me machucar. Estava selado em mim, o pacto
silencioso de dominação do masculino sobre o feminino, que todos de nossa
sociedade acabam selando cedo ou tarde...
Tudo isso se passou pela minha cabeça naquele deserto cinza.
Por isso aquele pânico todo em escalar uma arvorezinha... Aquilo sim era minha
natureza de verdade... Aquilo sim era parte inseparável de mim... E as lágrimas
que escorriam ajudavam essa parte esquecida de mim a se reintegrar ao seu lugar
de direito.
Olhei novamente para árvore. E ela olhou pra mim. Como se
lesse minha mente, ela me convidou, me desafiou novamente. “Não permita!” ela
me sussurrava... Mas eu não permitiria... Não permitiria a mim mesma acreditar
que não podia... Nunca mais! Saí andando em direção à árvore. Tirei meus
chinelos, segurei o vestido. Andei como um jaguar até metade de seu longo
tronco. O mesmo pânico de antes me assaltou. Paralisei. Olhei ao redor. Meu
companheiro me observava imóvel. Olhei para a árvore novamente. Nada me
pararia. Era uma questão de honra agora. Se eu descesse, senti que era como se
estivesse jogando essa parte de mim fora – só que dessa vez, para sempre.
Concentrei-me na árvore novamente. “Agora somos só eu e você, minha cara”,
pensava eu. O mesmo tremor, o mesmo suor frio... Só que dessa vez eu sabia de
onde vinham. Porquê estavam ali. Mas meu objetivo era maior. Da metade da
árvore em diante, eu andei lentamente como antes... Passinho por passinho...
Até chegar no final, onde a árvore tornava ser vertical. Apenas ter me sentado
ali já bastaria, mas não. Eu queria ficar em pé. Posicionei os pés onde eles
mesmos escolheram ficar – de repente eu voltava a saber como ouvir o meu corpo
– e lentamente fui me reerguendo. Cada centímetro, uma conquista. Até que tinah
voltado ao meu estado original – de pé. Inteira. No topo da árvore. Algo em mim
se mexia, se contorcia. Morria. Eu, recuperava minha vida. Recuperava um pedaço
de mim. E num misto de felicidade e fúria, soltei um rugido de vitória. “Nunca
mais... Nunca mais...”.
Meu companheiro, de longe riu de alegria comigo. Ele tinha
visto o pavor em meus olhos e agora via minha (re)conquista. Morria uma menina
assustada e indefesa. Preocupada e rígida. De repente, eu ganhei um mundo novo.
Se antes eu tinha o mundo do chão, agora tinha o mundo das copas das árvores
novamente. Um mundo que sempre tinha sido meu, um mundo ao qual eu sempre
pertenci – e que foi roubado de mim. Reconquistei também algo tão valioso
quanto: a confiança em meu próprio corpo. Quando deixei que ele decidisse
sozinho, percebi que ele sabia muito mais do que eu. Meu companheiro, o rio, a
Lua, o Vento e as estrelas eram minhas testemunhas. Eu estava só começando... E
começava de saia!
Você conseguiu redespertar o meu interesse pela recapitulação com esse seu relato maravilhoso. Você escreve de um jeito que me faz parecer que estou vendo um filme, obrigado por compartilhar as suas experiências!
ResponderExcluirOlá Claudemir,
ExcluirAlegra meu Coração saber que meus escritos alcançam outras pessoas... Eu que agradeço pelas visitas...
um abraço,