quarta-feira, 13 de março de 2013

Trocando de Pele


[Meus caros,
Este post por si só constitui por si só, um capítulo de um livro que o Intento indica que devo escrever. Tentei adaptá-lo para uma versão mais sucinta para o blog, já que o texto original deu 8 páginas só na seção de hoje. A versão inteira estará disponível no livro futuramente. Tomei então a decisão de salvar o texto completo no computador, e ir publicando partes dos escritos que achar mais legal compartilhar por aqui. Creio ter sido a decisão mais apropriada.]

Há sempre aquele momento antes das "pauladas do Espírito" em que a mente silencia. Em que a energia se prepara para uma grande tempestade de compreensões... Um estado em que já sentimos o futuro baque que vamos levar. Aquele estado de quase-compreensão, de quase-epifania. O estado sagrado em que nosso coração bate forte buscando a Transcendência de algo que não pode explicar de todo. Este texto carrega a marca desta confusão. Desse quase-morrer. É nesse estado que nossa energia, nossa Alma prepara-se para os choques a receber, prepara-se para os movimentos drásticos que vão ocorrer no leito de nossos Oceanos. Nesse estado queremos gritar o que nossa energia já entende, mas ainda não conseguimos explicar em palavras. Queremos manifestar algo urgente, que grita dentro de nós, mas ainda está coberto por uma parede leitosa que abafa os gritos. A parede da inconsciência. A pede da proteção do Ego, que como um cão de guarda ciumento quer nos poupar de qualquer dor. Mas é chegado o momento em que essa mesma Transcendência parece afagar sua cabeça, e convence-lhe de que isto é necessário. Que mostra-lhe que este é o Caminho... Então o fiel canino contagia-se com o Amor, percebe que não há nada a temer e abre os caminhos para a experiência. 

O momento em que nossa mente parece renunciar às tarefas habituais. Questões racionais simples parecem um enigma difícil de ser decifrado, enquanto perguntas existenciais da Alma são respondidas na velocidade de relâmpago. Momentos em que é impossível conectar-se com certos aspectos que foram até então fixos em nossa existência. Ainda que novos aspectos de nosso próprio Ser só possam ser vistos e sentidos em rápidos vislumbres no cotidiano. O que antes nos parecia óbvio e tão parte de nós até dois dias atrás, parecem ter sido esvaziados de significado e importância. A Mente então procura algo por perto para agarrar-se novamente a algo novo... Mas já é tarde. O Caminho já foi percorrido por tempo demais para ter algo dos lados para se agarrar. cada vez menos há chão ou céu, sem direita nem esquerda. Nem dentro nem fora. E percebemos que já não mais podemos contar com o alento de nos agarrar a nada. E ao mesmo tempo que algo em nós grita que exige segurança novamente, exige posicionamento... O próprio grito se desfaz quando prestamos atenção nele. Já percebemos a mentira em suas palavras, ainda que não consigamos encontrar a Verdade em outro lugar.

Na sala de aula, observo tudo atentamente. O lugar. As pessoas. Suas vibrações. Toda a poesia do Universo expressa naquele momento. Se antes preopcupava-me com a validade das teorias expostas, hoje isso me parece cômico, pois leio o coração de cada professor e vejo que em sua Alma, estas são suas Verdades. Leio cada ser ali, humanos ou não, como a mariposa que pousou sobre as paredes da escada, com um profundo respeito por tudo que é vivo. Percebo que as instituições nada mais são do que criações humanas. Tudo o que fazem é feito por humanos e seus pactos inconscientes. Em meu caderno se antes possuíam teorias e meus questionamentos sobre elas, carregados de revolta e incompreensão, hoje portam frases célebres de meus professores e seus 'mestres intelectuais'. As frases que indicam suas feridas interiores. E com compaixão sinto-me igual a eles, em nossas loucuras, dores, felicidades e conquistas.

De volta em casa, já não volto para um lar, mas para um acampamento em forma de apartamento. Alguns lugares abençoo com meu intento para que se se carreguem com um pouco de Poder para que eu possa executar o que preciso. E ao sair com amigos perdidos em suas histórias pessoais, mergulhados no medo da consciência de suas próprias atitudes, que antes julgava tao diametralmente diferentes de mim, vejo agora como somos tão iguais em nossas dores e alegrias. E alegro-me que possa ter ao meu redor estas pessoas! Depois de dias trancafiada em meu acampamento urbano, entristecida por digerir minhas próprias dores, são estas pessoas teoricamente tão 'inconscientes' que me tiram de minha solidão e me abraçam em meus passeios tão sem sentido para mim, mas cheio de sentido quando penso em compartilhar com alguém a sensação de ser humana, de compartilhar a sensação de estar viva. E ainda que eles não possam compreender porque fico tão feliz em encontrar com uma mariposa na escada, sei que eles compreender o sentimento de celebração, pois também estão vivos. E ainda que não possa explicar-lhes minha empolgação de ter tido uma conversa cheia de epifanias com uma árvore de Poder em frente ao prédio onde estudamos, posso compartilhar com eles a empolgação que eles possuem simplesmente porque é sexta-feira e eles vão ter dois dias de fuga de uma vida que detestam.

E neste momento o Amor me abraça. E ele então se torna o único vestígio de solidez em minha vida... Parece-me ser a única coisa perene Universo afora... Ainda que seja uma força tão selvagem, e ainda que me desperte um profundo medo de entregar-me totalmente a algo tão maior, tão mais antigo e tão mais poderoso, que poderia devorar-me sem pestanejar. Ainda assim me entrego. Mas não totalmente, pois ainda estou no limbo da quase-experiência. Ainda que não me identifique mais com o que fui uma semana atrás, ainda estou presa ao que fui e não consigo saltar do penhasco para o Abismo, presa por cordas de memórias em meu umbigo. Mas eu já pulei, e pendurada neste Abismo por estes fios, corto-os um a um com dentes e unhas, como se cortasse um pedaço de mim mesma, apesar do medo. Apesar da pressa. Apesar dos pesares.

Ahh, o Amor... Que força maravilhosa, poderosa... Mas... O Amor? Aquele Amor que experimentei naquela época com tal pessoa? Ou aquele amor sufocante de mãe que experimentei pela minha infância? Ou talvez aquele amor que nunca recebi daquela professora estressada no jardim de infância? Ou aquele amor que tanto quis daquela amiguinha da terceira série... Daqueles momentos que descobríamos a nós mesmas uma através da outra... Para ter depois tudo cortado abruptamente pelo preconceito instalado em nós? Ou quem sabe aquele Amor que acontece entre um paciente e um terapeuta, que corre silencioso e quase secreto entre os toques de sua mão na minha pele, enquanto aquela dor aguda, aquela crise de cura me invade o corpo e traz lágrimas aos olhos? Ou talvez o Amor que senti por aquela colega da adolescência simplesmente porque ela tinha uma beleza e um sorriso que eu amava tanto, mas tanto, que traduzi em inveja e competição? Ou o Amor por aquele professor misterioso que nunca mais vi e suas teorias estupendas sobre a vida, a morte, o tempo e o espaço, que quebravam semanalmente minha continuidade de mundo...? Ou aquele Amor inexplicável que tenho por minhas colegas de Dança, que nos conecta de tal forma que o movimento de uma é o movimento de todas, como se a música fundisse nossas almas em uma só?

A lista é infindável! Qual seria exatamente o tipo de Amor que o Universo teria além deste Abismo que me aguarda com a boca aberta, pendurada em suas presas por fios de memórias? O Amor dos amantes? O Amos entre pais e filhos? O Amor entre colegas? Entre mentes que pensam parecido? Ou quem sabe todos eles...? Ou quem sabe nenhum deles...? As memórias pairam confusas diante de mim, enquanto uma J. insegura e apavorada me grita da beira do penhasco para agarrar sua mão e voltar? Será que essa J. me ama? Ou eu que amo a ela? Ela precisa de mim? Ou eu que preciso dela? Ou nenhuma das alternativas anteriores? Olho para seus olhos chorosos e seus gritos de pressa... A cada fio de memória cortado ela geme de dor. Ela sabe que vai morrer. Ela e todas as doces memórias que fizeram sua vida. Sinto Muito. Não posso mais parar. Será que já que vai morrer não pode simplesmente morrer com dignidade? Será que não vê que seu destino já não pode mais ser mudado? Mas ela não vê. Ela grita porque não é real. Ela grita para me convencer de que sou eu. Mas eu sei que ela não é. E ela sabe que eu sei. Por isso, grita. Eu sou a doida suicida pendurada no penhasco, e cortando a corda que lhe separa da própria Morte. Ainda assim estou ligada a ela por estes cordões. E seus gritos de desespero me perturbam. E sua tristeza ainda pesa em meu peito... Por enquanto. Falta muito pouco agora.

O Abismo inspira e respira, e com ele sinto o cheiro de seu hálito de Vida e Morte. Ele poderia terminar de cortar estes fios para mim com o unir de suas mandíbulas. Mas não fazê-lo. Ele me quer inteira. Ele me quer suicida, e não caçada.

[...]

Enquanto isso na aula de Comunicação, em alguma faculdade qualquer de um lugar qualquer, escrevo o quanto o comunicar-se é tão relativo e impreciso... Divago sobre o quanto a comunicação é vital à Mente Social. Filosofo com a elegância de uma quase-cientista em um papel emprestado de um amigo. Hoje eu esqueci meu caderno. Enquanto isso, a professora confusa e mais preocupada em ser aprovada pelos alunos e pela instituição onde trabalha (que no fundo são só pessoas), não conseguiria entender facilmente minhas divagações escritas. A Filosofia parece não tocá-la de todo. Enquanto penso no quanto sou parecida com ela e todos aqui, em nossas limitações e talentos, um fio do penhasco é cortado. De um lado escuto uma J gritar, do outro, sinto o alívio de uma outra J.

O olhar de desaprovação dele me assalta. As palavras de dor e decepção. Como dói... Os objetos quebrados e o medo de que algum caco caia sobre mim e me corte. No instante seguinte lá está ela furiosa de novo, como sempre, pela panela que eu esqueci de lavar. Mais um flash e estou chorando no colo de um estranho que finge empatia por mim. E finalmente o berço. Solitário. Trancada num quarto de apartamento trancado, eu grito sozinha por algum referencial no meio de luzes e voladores que desfilam perante minha visão intacta de recém-nascida... Com a respiração forte e os olhos estalados e fixos num ponto fora de foco na sala de aula, eu sinto meu coração palpitar e me acalmo. Falta de ar. Olho no relógio. Quanto tempo há se passado? Dois minutos? Não. Quarenta e oito minutos para ser exata. Os slides na frente da sala, totalmente alienígenas em seu conteúdo para mim, não negam. Algo que conecta todas estas memórias. A Decepção. Quinze minutos atrás foi a sensação de impotência. Relativamente rápida. Oito minutos, interrompidos pela pergunta do colega do lado sobre algo que não me lembro.

Mas os piores deles ocorrem em casa, ou melhor, no acampamento... Primeiro com minha mãe, e a mãe dela... Por 3 horas. Depois com meu pai... Que se imenda com meus amantes passados... Por mais 2 horas. Não porque tenha acabado, mas porque meu corpo não aguentou. Precisei comer. Finalmente com animais que abençoaram minha vida, com faxineiras-babás que amei mais do que a ordem social permitia.

E mais um fio crucial é cortado neste instante que escrevo...

[...]

Agora faltam poucos fios... Os mais catárticos ficam por último... No centro do bolo de fios. Aquela na beira do penhasco já desistiu de gritar... Agora limita-se a gemidos de dor, e espasmos, deitada no chão. Não por conformismo. Mas simplesmente porque já não tem mais energia para berrar. Eu sustentava aquela garota com meu próprio Ser. E agora pegava de volta o que era meu...