quarta-feira, 27 de junho de 2012

Eles mentiram




Eles disseram que eu não podia.
Eles disseram que eu não conseguiria.
Eles disseram que eu não era capaz.

Eles mentiram.

Eles disseram que eu cairia
Eles disseram que eu me quebraria em mil pedaços
que nunca mais poderiam ser reconstituídos.

Eles mentiram.

Eles disseram que eu não deveria
Porque a vida real não era feita de Sonhos nem de Magia
Mas sim de matéria, de fome e de dinheiro.
Eles me disseram que seria impossível.
Porque ninguém se interessa pelo o que não lhes beneficia egoisticamente.

Eles mentiram!

Eles disseram que eu sofreria
Se continuasse a acreditar
Que a utopia valia a pena, mesmo se a Alma não fosse pequena
Que a Natureza seria salva - ou que ela era maior do que nós.
Eles me disseram que eu deveira me conformar
Que a vida é dura e difícil, que as conquistas são dolorosas
Que o preço da realidade é o sonho, e que os sonhos nos custavam ainda mais caro.

Eles estavam enganados.


Eles me disseram 
Que as mulheres sempre corriam mais perigo
Porque eram belas e frágeis como a flor
E indefesas e vulneráveis como nada na Natureza é.
Eles me disseram 
Que com um bom homem eu estaria segura. Que eu estaria protegida.
Dos outros homens (aqueles que nos aguardam armados à noite, nas ruas vazias)
que gostam de devorar mulheres - e que eles estavam em toda parte!
E que caso isso acontecesse, eu estaria perdida para sempre
E que as mulheres devoradas nunca mais se recuperam das violências que lhes infringem.

Mentira! Mentira! Mentira!


Eles me disseram
Que era importante me preparar para ser uma das Escolhidas
que conseguiam galgar a sua gloriosa independência
produzindo sem questionar ou criticar 
para os poucos que detinham o Poder de pagar um salário.
Eles me disseram
Que aí então eu seria feliz
Porque compraria minhas próprias roupas, realizaria meus próprios desejos
Sem depender de nada ou de ninguém. E então eu seria livre.

Mentira maior nunca foi contada!


.
.
.

NÃO.

Eles mentiram - porque eu consegui.
Eu fui pude. Eu fui capaz.
Sim, eu caí, mas me levantei, me regenerei como um vegetal,
e continuei caminhando como um animal na selva - de pedra.

Eles mentiram - A Magia está aí para quem quiser vê-la.
A realidade depende dos Sonhos.
E não há Ego maior do que nos sentirmos incapazes!

Mas, justiça seja feita: Eles estavam certos quanto à Utopia.
Disseram que eu sofreria.
Eu sofri - não por dificuldades de trazê-la à luz.
Isso foi simples, no fim das contas...
Mas sim porque um dia acabei acreditando neles - e me esqueci dela.
Escuridão maior jamais se fez em minha vida.


Também estavam certos sobre as mulheres serem belas.
Mas sobre elas, só estavam certos sobre isso.
Pois nada na Grande Mãe é incapaz de ferir
E todo homem conhece no seu Coração o poder de ferir que as mulheres têm.
Eles mentiram: os homens que gostam de devorar mulheres não estão nas ruas escuras e vazias.
Nas ruas escuras e vazias estão os amantes proibidos!
Estão os perdidos, e os que não têm casa para voltar.
Os homens que gostam de devorar mulheres estão nos holofotes, nas câmeras,
espalhando por aí que as mulheres são coisas que não são.
Eles também mentiram quando disseram que as mulheres nunca mais se recuperam.
Mentiram tanto, tantas vezes, que fizeram a própria mulher esquecer que a cada Lua que passa,
Ela nasce, germina, desabrocha, decai, morre e renasce.
Assim é a natureza da mulher - de toda fêmea.
E não há nada que ela não possa regenerar.


E mentiram de novo: comprei minhas próprias roupas.
Com meu próprio dinheiro. Ainda assim, não fui feliz.
Até fui uma das Escolhidas - acreditem se quiserem!
E não fui independente.
Na verdade, "liberdade" nunca esteve tão distante.
Escolher, na volta do shopping, o que levar para casa.
não anulava  minha tristeza em não escolher o que deixar para o mundo, quando saía de casa.
Continuei dependendo do abençoado desconhecido que plantava minha comida,
da anônima camareira que trocava meus lençóis durante o dia de trabalho,
do glorioso Sol e da amada Gaia para me manter viva.

Ainda assim, hoje, caminhando entre os que me diziam essas mentiras,
Assim, de repente, percebi que somos iguais. Somos idênticos!
Nossas dores dóem igual. Nossos corações disparam frente a um novo amor.
Nossos estômagos se contorcem com a fome e nossos olhos se cansam com o sono.
Contaram a todos nós as mesmas mentiras, com os mesmos argumentos,
travestidos de novos e inovadores.
A ÚNICA diferença entre nós é que eles acreditaram.

Eu não.


sexta-feira, 22 de junho de 2012

O que você quer?

(My Sweet Rose by J.W. Waterhouse)

Madrugada de quinta feira. Acordo de mais um sono acidental lendo um livro. Levanto, apago as luzes, fecho as janelas, aciono o despertador com aquele gostinho de quem queria continuar dormindo mais. Por algum motivo sem motiv, ligo o rádio. O mundo pára. Esqueço que é madrugada, que é quinta feira, que amanhã tenho que acordar cedo. Toda minha atenção de repente se volta para as palavras de Rita Lee que me atingem como uma flecha.  Perco o sono. Ela repete: "O que você quer? O que você quer de verdade?". Desanimo: não sei. Viro pro lado. Rita Lee continua me perguntando. "O que você quer?" Espere aí. Eu me volto de novo para o rádio. Eu sei sim, senhora Ovelha Negra... Em algum lugar dentro de mim, eu sei o que eu quero. Respiro fundo. Onde estou com a cabeça? O que estou fazendo da minha vida? Eu não terei duas. E estou fazendo tudo errado. Minha rotina não preenche meu Ser, mas toda todo meu tempo e energia. Aquela sensação de amargura da vida que nós nos acostumamos a nos acostumar, de repente, começa a minha incomodar. O sono é implacável. O corpo cobra o descanso prometido durante o dia. Quem sabe meu Sonhar não seja interessante... Ilumine meu Caminho... Mas não. Eu não posso esquecer... Preciso anotar... Aonde? 

Ah... Esqueça... Não gosto dessa vida mas não tem jeito, não é? A vida real é assim mesmo... As pessoas trabalham para sobreviver, pagar suas contas, criar seus filhos... Os mais sortudos possuem hobbies aos quais podem se dedicar durante a semana. Você tem vários. Considere-se sortuda e contente-se com isso. Um dia você poderá fazer o que quer. Hoje, você tem que acordar cedo. Durma logo.

Mas Dona Rita insiste... " O que você quer de verdade?". Tem alguma coisa errada... No que é que eu estava pensando mesmo...? Não consigo lembrar... Ah é! Anotar! Anotar o que mesmo...? O que eu quero! Obrigada Santa Rita de Sampa! Nossa... Como estava falando besteira... E quase me esqueci de anotar... "O que eu quero...". Mal terminei a ultima letra e a escuridão do sono já tinha me engolido pra só me devolver pro mundo 3 horas depois, arrancada pelo despertador - mais uma vez, como sempre.

Passam-se os dias, as provas, as contas, as asneiras das salas de aula, dos almoços com os amigos, do chefe e toda aquela ladainha de sempre. Quase esgotada fisicamente decido que é hora de faxinar o apê. Encontro um papelzinho misterioso debaixo da cama. Em letras que mal parecem minhas de tão tortas. "O que você quer?". A Ovelha Negra volta a cantar na minha cabeça. Sinto no peito a lembrança daquela flechada. A faxina acabou. A noite está só começando.

Já até sei... Quando essas flechadas batem, é melhor ter minhas armas à mão: um editor de texto, as aquarelas, os pincéis e as folhas em branco. Nunca se sabe por onde vai vir o ataque. Dessa vez, porém, não veio nada. Só o vazio da noite, o barulho da chuva, o corpo cansado. Tudo igual... Se não fosse essa sensação sutil e insistente de tristeza que desce lenta e imponente nos meus ombros e peito. De repente percebo. Eu sei o que quero. Sempre soube. Só não tinha coragem de olhar pra isso com sinceridade comigo mesma. Sempre foi óbvio. As madrugadas em claro, as músicas, os pincéis, os incensos - e aquela sensação de não-pertencer a nada dos humanos. De ser mais bicho do que gente. De às vezes ser mais morta do que viva. De ser mais Sonho que "realidade". Eu sempre soube. Eu sempre soube "o que eu sempre queria de verdade". Só nunca quis ver.

Agora o tempo cobrava seu preço. A morte se aproxima implacável. E o tempo gasto com isso não volta, não é devolvido nem trocado na loja. De repente, me vem um desespero. Vou largar tudo. Vou partir pra outro mundo. Outra cidade, outro país, outro nome, outra vida inteira. Eu sei que sou louca o suficiente. E se não for, vou virar. É isso. Pego meus pincéis, meus livros, meus incensos, minhas saias e vou pra qualquer lugar. Algum lugar com montanhas... Sul de Minas, sim... Um lugar mágico. Já conheço. Quando meus pais perceberem, já terei ido. Eles sempre souberam que eu era meio maluca mesmo... Talvez se me verem feliz vão me apoiar. Talvez não. Não importa mais. Meu namorado vai me entender, e se bobear, até vai comigo. Também não importa. Já começo a imaginar toda a logística da viagem quando uma presença me interrompe:

- Onde você pensa que vai?
- Não sei. E também, não importa. Sei que estou indo.
- Você não está indo a lugar nenhum. Sabe por que?
- Por que? Um fantasminha camarada da segunda atenção vai me impedir?
- Porque não está indo, simplesmente. Está fugindo. Fugindo como uma condenada.

Ele estava certo. De repente todo o fogo leva um balde de água fria. Novamente sem rumo eu me sentei na beirada da cama. A mesma voz que me perguntava o que eu queria, me dizia que ir embora não era o caminho. De que adianta fugir do que me desagrada? Venho travando a mesma batalha há tanto tempo e agora vou simplesmente abandoná-la? Perder a oportunidade de vencer? De me libertar? Não... Alguma coisa não está se encaixando... Infelizmente, querendo ou não, apenas quando esse lugar, essa egrégora não me causar mais incômodo nem fascínio em nenhum aspecto, apenas então, poderei partir. Aí então, partirei. Não por fuga, mas por uma nova batalha... Compreendi então o que é "saber que se pode morrer a qualquer momento e ainda assim agir como se não soubesse". Um paradoxo de dar nó na cabeça e no estômago. Porém ainda me entristecia saber que o que eu precisava exteriorizar, exorcizar, libertar, continuaria preso... "O que eu queria" continuaria - até que essa batalha se encerasse - continuando apenas isso: algo que queria. Pelo menos até minha outra batalha ter sido ganha, coisa que, pelo jeito, ia demorar. E assim minha noite terminaria... Com mais uma amarga e preciosa lição do Caminho.

Mas Dona Ovelha Negra, novamente, tinha outros planos para mim... E na mesma canção que me causara tanta confusão, me acalenta: "O que você quer estará em você quando você se lembrar. O que você quer estará em você, quando você não se lembrar". Lembrei-me então de uma frase que eu muito já tinha dito a mim mesma "Somos indissociáveis de nós mesmos". Fui dormir tranquila, com o despertador acionado para o tortura diária de sair da cama na manhã gélida do dia seguinte, como sempre. Mas dessa vez, uma paz profunda me embalava o Sonhar. Dessa vez, eu sabia que não importava quanto tempo eles precisassem esperar, meus pincéis e meus incensos não se separariam de mim - e de repente o despertador nem era mais tão cruel assim...




domingo, 17 de junho de 2012

A Sede



Não sabia desde quando, mas eu tinha sede.
Percorria desertos, florestas, cruzava oceanos para saciá-la.
Porém nada parecia conseguir saciá-la de todo.
Ainda assim, eu tinha sede - uma sede incontrolável!

Passou-se uma vida inteira, enquanto eu buscava
Com desespero cada vez maior, alívios momentâneos
Para uma sede que parecia eterna.

E então, mais por casaço que por desesperança, eu desisti.
Simplesmente desisti. Minha sede nunca seria saciada.
Tinha um balde cheio de água cristalina nas mãos,
Ele refletia meu rosto cego de desespero.
Mas coloquei-o no chão - apesar da sede.

Tirei minhas mãos dele, e dei-lhe as costas,
E então, assim, repente,
Senti-me pela primeira vez em muito, muito tempo - leve.
Pela primeira vez, em muito, muito tempo,
Eu reparei no horizonte,
no Sol, no céu, nos Ventos e nas flores.
Havia, de repente, um mundo inteiro ao meu redor.

Então, em um susto de gelar a barriga, eu percebi:
Minha sede havia me libertado!