sexta-feira, 22 de junho de 2012

O que você quer?

(My Sweet Rose by J.W. Waterhouse)

Madrugada de quinta feira. Acordo de mais um sono acidental lendo um livro. Levanto, apago as luzes, fecho as janelas, aciono o despertador com aquele gostinho de quem queria continuar dormindo mais. Por algum motivo sem motiv, ligo o rádio. O mundo pára. Esqueço que é madrugada, que é quinta feira, que amanhã tenho que acordar cedo. Toda minha atenção de repente se volta para as palavras de Rita Lee que me atingem como uma flecha.  Perco o sono. Ela repete: "O que você quer? O que você quer de verdade?". Desanimo: não sei. Viro pro lado. Rita Lee continua me perguntando. "O que você quer?" Espere aí. Eu me volto de novo para o rádio. Eu sei sim, senhora Ovelha Negra... Em algum lugar dentro de mim, eu sei o que eu quero. Respiro fundo. Onde estou com a cabeça? O que estou fazendo da minha vida? Eu não terei duas. E estou fazendo tudo errado. Minha rotina não preenche meu Ser, mas toda todo meu tempo e energia. Aquela sensação de amargura da vida que nós nos acostumamos a nos acostumar, de repente, começa a minha incomodar. O sono é implacável. O corpo cobra o descanso prometido durante o dia. Quem sabe meu Sonhar não seja interessante... Ilumine meu Caminho... Mas não. Eu não posso esquecer... Preciso anotar... Aonde? 

Ah... Esqueça... Não gosto dessa vida mas não tem jeito, não é? A vida real é assim mesmo... As pessoas trabalham para sobreviver, pagar suas contas, criar seus filhos... Os mais sortudos possuem hobbies aos quais podem se dedicar durante a semana. Você tem vários. Considere-se sortuda e contente-se com isso. Um dia você poderá fazer o que quer. Hoje, você tem que acordar cedo. Durma logo.

Mas Dona Rita insiste... " O que você quer de verdade?". Tem alguma coisa errada... No que é que eu estava pensando mesmo...? Não consigo lembrar... Ah é! Anotar! Anotar o que mesmo...? O que eu quero! Obrigada Santa Rita de Sampa! Nossa... Como estava falando besteira... E quase me esqueci de anotar... "O que eu quero...". Mal terminei a ultima letra e a escuridão do sono já tinha me engolido pra só me devolver pro mundo 3 horas depois, arrancada pelo despertador - mais uma vez, como sempre.

Passam-se os dias, as provas, as contas, as asneiras das salas de aula, dos almoços com os amigos, do chefe e toda aquela ladainha de sempre. Quase esgotada fisicamente decido que é hora de faxinar o apê. Encontro um papelzinho misterioso debaixo da cama. Em letras que mal parecem minhas de tão tortas. "O que você quer?". A Ovelha Negra volta a cantar na minha cabeça. Sinto no peito a lembrança daquela flechada. A faxina acabou. A noite está só começando.

Já até sei... Quando essas flechadas batem, é melhor ter minhas armas à mão: um editor de texto, as aquarelas, os pincéis e as folhas em branco. Nunca se sabe por onde vai vir o ataque. Dessa vez, porém, não veio nada. Só o vazio da noite, o barulho da chuva, o corpo cansado. Tudo igual... Se não fosse essa sensação sutil e insistente de tristeza que desce lenta e imponente nos meus ombros e peito. De repente percebo. Eu sei o que quero. Sempre soube. Só não tinha coragem de olhar pra isso com sinceridade comigo mesma. Sempre foi óbvio. As madrugadas em claro, as músicas, os pincéis, os incensos - e aquela sensação de não-pertencer a nada dos humanos. De ser mais bicho do que gente. De às vezes ser mais morta do que viva. De ser mais Sonho que "realidade". Eu sempre soube. Eu sempre soube "o que eu sempre queria de verdade". Só nunca quis ver.

Agora o tempo cobrava seu preço. A morte se aproxima implacável. E o tempo gasto com isso não volta, não é devolvido nem trocado na loja. De repente, me vem um desespero. Vou largar tudo. Vou partir pra outro mundo. Outra cidade, outro país, outro nome, outra vida inteira. Eu sei que sou louca o suficiente. E se não for, vou virar. É isso. Pego meus pincéis, meus livros, meus incensos, minhas saias e vou pra qualquer lugar. Algum lugar com montanhas... Sul de Minas, sim... Um lugar mágico. Já conheço. Quando meus pais perceberem, já terei ido. Eles sempre souberam que eu era meio maluca mesmo... Talvez se me verem feliz vão me apoiar. Talvez não. Não importa mais. Meu namorado vai me entender, e se bobear, até vai comigo. Também não importa. Já começo a imaginar toda a logística da viagem quando uma presença me interrompe:

- Onde você pensa que vai?
- Não sei. E também, não importa. Sei que estou indo.
- Você não está indo a lugar nenhum. Sabe por que?
- Por que? Um fantasminha camarada da segunda atenção vai me impedir?
- Porque não está indo, simplesmente. Está fugindo. Fugindo como uma condenada.

Ele estava certo. De repente todo o fogo leva um balde de água fria. Novamente sem rumo eu me sentei na beirada da cama. A mesma voz que me perguntava o que eu queria, me dizia que ir embora não era o caminho. De que adianta fugir do que me desagrada? Venho travando a mesma batalha há tanto tempo e agora vou simplesmente abandoná-la? Perder a oportunidade de vencer? De me libertar? Não... Alguma coisa não está se encaixando... Infelizmente, querendo ou não, apenas quando esse lugar, essa egrégora não me causar mais incômodo nem fascínio em nenhum aspecto, apenas então, poderei partir. Aí então, partirei. Não por fuga, mas por uma nova batalha... Compreendi então o que é "saber que se pode morrer a qualquer momento e ainda assim agir como se não soubesse". Um paradoxo de dar nó na cabeça e no estômago. Porém ainda me entristecia saber que o que eu precisava exteriorizar, exorcizar, libertar, continuaria preso... "O que eu queria" continuaria - até que essa batalha se encerasse - continuando apenas isso: algo que queria. Pelo menos até minha outra batalha ter sido ganha, coisa que, pelo jeito, ia demorar. E assim minha noite terminaria... Com mais uma amarga e preciosa lição do Caminho.

Mas Dona Ovelha Negra, novamente, tinha outros planos para mim... E na mesma canção que me causara tanta confusão, me acalenta: "O que você quer estará em você quando você se lembrar. O que você quer estará em você, quando você não se lembrar". Lembrei-me então de uma frase que eu muito já tinha dito a mim mesma "Somos indissociáveis de nós mesmos". Fui dormir tranquila, com o despertador acionado para o tortura diária de sair da cama na manhã gélida do dia seguinte, como sempre. Mas dessa vez, uma paz profunda me embalava o Sonhar. Dessa vez, eu sabia que não importava quanto tempo eles precisassem esperar, meus pincéis e meus incensos não se separariam de mim - e de repente o despertador nem era mais tão cruel assim...




3 comentários:

  1. Lindo Jéssika, lindo. Muito boa a inspiração, o texto, a sequência, tudo fantástico, bem casado, e bem ligado a uma pessoa que sabe o que quer, e sabe o que precisa para chegar onde quer.

    Sabemos nós dois que não podemos fugir, sabemos nós dois que enfrentar, lutar é o que devemos fazer, para chegar onde devemos chegar, não há vitórias sem luta, e não há luta se não há incomodação. O mundo social nos afoga, não afaga, mas ele é necessário, é realmente necessário este palco, este picadeiro, onde as vezes somos palhaços, as vezes malabaristas, as vezes mágicos, mas que inevitavelmente sairemos um dia, e como você mesma disse, ou foi dito a ti: sairemos de cabeça erguida, vencida a batalha, não como fugitivos, mas como vencedores.

    intento amiga

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  2. Olá Géssica e Enio, belas palavras... Sabem, tenho acompanhado vocês a um longo tempo, e fico muito contente ...
    Géssica, eu achei legal você citar sul de Minas, montanhas... moro ...

    Gente, obrigada por compartilhar.

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  3. Olá, é uma honra recebê-los aqui...

    Creio que no fundo sempre sabemos que essa rede de guerreiros existe ao redor do país e do planeta - e provavelmente até mais além, rsrs. Mas receber 'lembretes' da existência de companheiros de caminhada é sempre um presente do Espírito! ^^

    Forte abraço,

    Intento!

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